
Desafios e impactos do constraint‑off no setor elétrico: o que revelou a audiência pública no Senado
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- 02/10/2025
Participantes apontam repasse tarifário, carência de infraestrutura e necessidade de regulação mais clara como pontos centrais da disputa
No dia 30 de setembro de 2025, a Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI) do Senado promoveu uma audiência pública para debater os impactos do mecanismo conhecido como constraint-off no setor elétrico brasileiro. A iniciativa visou ouvir contribuições da sociedade sobre os efeitos desse mecanismo nas tarifas, nos contratos do mercado de energia e nos direitos dos consumidores. Segundo relatório construído com base em 114 manifestações, emergiram preocupações expressivas — muitas delas ligadas à sensação de que custos e riscos do sistema acabam sendo transferidos às famílias e empresas.
Neste artigo, busco apresentar uma análise aprofundada dos principais temas levantados na audiência, situar tecnicamente o mecanismo constraint-off, destacar os pontos de tensão mais agudos e responder: afinal, por que o consumidor teme pagar pela energia que não foi gerada?
O que é “constraint-off” e como opera
Para entender o debate, é fundamental explicar o conceito técnico:
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O termo constraint-off (também chamado de “curtailment” no jargão energético) se refere a situações nas quais uma usina de geração tem condições técnicas e recursos para produzir energia, mas é impedida por restrições externas ao seu parque — por exemplo, limitações na rede de transmissão, gargalos operativos ou falta de capacidade de escoamento.
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Em tais casos, embora a usina pudesse gerar eletricidade, o Operador Nacional do Sistema (ONS) determina que ela deixe de gerar — e, dependendo das regras, pode haver compensação financeira ao gerador.
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A compensação, por sua vez, muitas vezes é custeada pelos chamados Encargos de Serviços do Sistema (ESS), que são repassados aos consumidores via faturas de energia elétrica.
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Vale registrar que nem todos os eventos de constraint-off geram obrigação de ressarcimento — por exemplo, casos estruturais e de longa duração muitas vezes não entram nas previsões contratuais de compensação. ANEEL
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Em especial para usinas fotovoltaicas (energia solar), uma norma recente define que eventos de restrição por constrained-off originados por indisponibilidade externa serão considerados para compensação somente a partir de 1º de abril de 2024. Aneel
Em resumo: trata-se de um mecanismo regulatório que concilia a necessidade de manter a confiabilidade do sistema elétrico (evitando sobrecargas, falhas ou desequilíbrios) com a premissa de que os geradores não sejam penalizados demasiadamente por restrições operacionais.
Análise das manifestações: principais eixos de debate
Com base nas 114 participações registradas na audiência, o relatório sintetizou seis grandes temas que concentram as preocupações dos cidadãos. Aqui vai um aprofundamento, com reflexões críticas:
1. Impacto nas Tarifas e nos Custos para o Consumidor
Este tema foi o mais citado. Muitos participantes questionaram a legitimidade de repassar ao consumidor encargos relacionados à energia que nunca foi efetivamente entregue ou consumida: “É justo que o consumidor pague pela energia que não foi gerada devido a uma limitação da infraestrutura da rede?” (João P., RS).
A apreensão é que o consumidor final, pouco envolvido nas decisões técnicas ou operacionais do sistema, acaba assumindo o risco de estrangulamentos da infraestrutura que deveriam ser mitigados pelos agentes do setor ou reguladores.
2. Falta de Investimento em Infraestrutura de Transmissão
Uma crítica recorrente foi que o aumento da geração de fonte renovável — especialmente solar e eólica — não foi acompanhado por expansão proporcional da capacidade de transmissão. Sem linhas adequadas para escoar essa energia, torna-se mais provável a ocorrência de restrições operativas.
Perguntas como “Por que a falta de investimento em linhas de transmissão é paga pelo consumidor, e não pelas empresas do setor?” (Fabiano D., RJ) ilustram o sentimento de que o ônus recai sobre quem não tem participação nos benefícios diretos.
3. Regulação, Governança e Transparência
Muitos manifestantes demandaram regras mais límpidas e fiscalização efetiva sobre como os custos do constraint-off são calculados, rateados e fiscalizados. Também querem maior clareza sobre quem ganha e quem arca com os encargos.
É um apelo por governança democrática no setor elétrico, para que os mecanismos não funcionem de forma opaca, favorecendo agentes mais estruturados.
4. Incentivo às Energias Renováveis e Alternativas
Embora o constraint-off atue justamente sobre fontes limpas (especialmente solar e eólica), muitos participantes defendem que o modelo regulatório deveria estimular, e não penalizar, a geração renovável.
Soluções como armazenamento de energia, microrredes e produção de hidrogênio verde foram citadas como caminhos para reduzir desperdícios e equilibrar a oferta.
5. Impactos Contratuais e no Mercado de Energia
Esse grupo de manifestações abordou aspectos técnicos: segurança jurídica diante de cláusulas contratuais, previsibilidade de custos para geradores e potenciais distorções de incentivos causadas por regimes de remuneração que subestimam risco de restrições operacionais.
6. Dúvidas Sobre o Conceito de Constraint-off
Alguns cidadãos admitiram não entender completamente o mecanismo, o que revela uma lacuna comunicativa: “Eu gostaria de saber o que vem a ser constraint-off no setor elétrico.” (Valdemir M., SP).
Esse ponto reforça que o debate regulatório não é apenas técnico, mas um espaço em que é preciso traduzir o jargão para o cidadão.
Ponto de Clímax: a injustiça percebida no repasse de custos
O cerne do debate, e o ponto de maior tensão, reside na seguinte questão: por que o consumidor deveria pagar por algo que não consumiu?
Essa percepção de injustiça emerge sempre que há uma assimetria entre quem decide (operador, gerador ou regulador) e quem paga (usuário final). Quando falhas ou limitações estruturais no sistema são tratadas como custo repartido, a credibilidade regulatória é posta em xeque.
O momento de clímax desse debate foi justamente no apelo por substituir o modelo de repasse cego por critérios mais refinados de rateio, responsabilização de agentes mais próximos ao problema e adoção de mecanismos de mitigação prévia (investimentos em rede, armazenamento, planejamento territorial).
Por que isso é importante — e o que está em jogo
Responder ao “por que” desse debate é fundamental para perceber seu alcance:
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Proteção ao consumidor: se o modelo regulatório permitir que encargos sejam repassados sem contrapartidas claras, há risco de consumo injusto e oneração indevida de famílias e empresas.
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Eficiência do setor elétrico: mecanismos de mercado e incentivos bem calibrados estimulam investimentos e evitam gargalos. Modelos desequilibrados podem gerar desincentivo à geração (renovável ou não).
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Segurança jurídica e previsibilidade: geradores e contratantes demandam regras claras sobre quando, por que e quanto podem ser ressarcidos. Incerteza gera aversão a investimento.
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Transparência e legitimidade institucional: para que o público aceite decisões regulatórias, é necessário que elas sejam bem explicadas, justificadas e auditáveis.
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Transição energética justa: estamos em uma fase de expansão renovável acelerada, e regulamentos que penalizam ou restringem essa expansão podem frear metas de descarbonização.
Caminhos regulatórios e soluções emergentes
Com base nos debates, nas normas vigentes e em práticas internacionais, algumas direções se mostram promissoras:
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Critérios mais refinados de rateio de custos
Em vez de repartir uniformemente entre todos consumidores, pode-se ponderar por região, perfil de carga, distâncias de escoamento ou localização dos geradores. Isso evita externalidades injustas. -
Fundo de alívio ou mecanismos de compensação coletiva
Estabelecer provisionamentos setoriais que amortizem os impactos em momentos pontuais, reduzindo picos de repasse para o consumidor. -
Obrigação ou metas de investimento das transmissoras
Regulamentar que empresas de transmissão participem mais ativamente do risco de expansão, especialmente nas áreas de renovável crescente. -
Incentivos ao armazenamento, hidrogênio verde e microrredes
Soluções tecnológicas para absorver excedentes, suavizar variabilidade e reduzir a pressão no sistema central. -
Normas de comunicação e transparência
Exigir que o ONS, a ANEEL e os demais operadores publiquem relatórios claros e acessíveis sobre eventos de constraint-off, critérios de compensação e impacto tarifário. -
Revisão contratual e estabilização regulatória
Garantir cláusulas contratuais que definam previamente os tratamentos para restrições operativas, reduzindo litígios futuros.