Desafios e impactos do constraint‑off no setor elétrico: o que revelou a audiência pública no Senado

Desafios e impactos do constraint‑off no setor elétrico: o que revelou a audiência pública no Senado

Participantes apontam repasse tarifário, carência de infraestrutura e necessidade de regulação mais clara como pontos centrais da disputa

No dia 30 de setembro de 2025, a Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI) do Senado promoveu uma audiência pública para debater os impactos do mecanismo conhecido como constraint-off no setor elétrico brasileiro. A iniciativa visou ouvir contribuições da sociedade sobre os efeitos desse mecanismo nas tarifas, nos contratos do mercado de energia e nos direitos dos consumidores. Segundo relatório construído com base em 114 manifestações, emergiram preocupações expressivas — muitas delas ligadas à sensação de que custos e riscos do sistema acabam sendo transferidos às famílias e empresas.

Neste artigo, busco apresentar uma análise aprofundada dos principais temas levantados na audiência, situar tecnicamente o mecanismo constraint-off, destacar os pontos de tensão mais agudos e responder: afinal, por que o consumidor teme pagar pela energia que não foi gerada?

O que é “constraint-off” e como opera

Para entender o debate, é fundamental explicar o conceito técnico:

  • O termo constraint-off (também chamado de “curtailment” no jargão energético) se refere a situações nas quais uma usina de geração tem condições técnicas e recursos para produzir energia, mas é impedida por restrições externas ao seu parque — por exemplo, limitações na rede de transmissão, gargalos operativos ou falta de capacidade de escoamento.

  • Em tais casos, embora a usina pudesse gerar eletricidade, o Operador Nacional do Sistema (ONS) determina que ela deixe de gerar — e, dependendo das regras, pode haver compensação financeira ao gerador.

  • A compensação, por sua vez, muitas vezes é custeada pelos chamados Encargos de Serviços do Sistema (ESS), que são repassados aos consumidores via faturas de energia elétrica.

  • Vale registrar que nem todos os eventos de constraint-off geram obrigação de ressarcimento — por exemplo, casos estruturais e de longa duração muitas vezes não entram nas previsões contratuais de compensação. ANEEL

  • Em especial para usinas fotovoltaicas (energia solar), uma norma recente define que eventos de restrição por constrained-off originados por indisponibilidade externa serão considerados para compensação somente a partir de 1º de abril de 2024. Aneel

Em resumo: trata-se de um mecanismo regulatório que concilia a necessidade de manter a confiabilidade do sistema elétrico (evitando sobrecargas, falhas ou desequilíbrios) com a premissa de que os geradores não sejam penalizados demasiadamente por restrições operacionais.

Análise das manifestações: principais eixos de debate

Com base nas 114 participações registradas na audiência, o relatório sintetizou seis grandes temas que concentram as preocupações dos cidadãos. Aqui vai um aprofundamento, com reflexões críticas:

1. Impacto nas Tarifas e nos Custos para o Consumidor

Este tema foi o mais citado. Muitos participantes questionaram a legitimidade de repassar ao consumidor encargos relacionados à energia que nunca foi efetivamente entregue ou consumida: “É justo que o consumidor pague pela energia que não foi gerada devido a uma limitação da infraestrutura da rede?” (João P., RS).

A apreensão é que o consumidor final, pouco envolvido nas decisões técnicas ou operacionais do sistema, acaba assumindo o risco de estrangulamentos da infraestrutura que deveriam ser mitigados pelos agentes do setor ou reguladores.

2. Falta de Investimento em Infraestrutura de Transmissão

Uma crítica recorrente foi que o aumento da geração de fonte renovável — especialmente solar e eólica — não foi acompanhado por expansão proporcional da capacidade de transmissão. Sem linhas adequadas para escoar essa energia, torna-se mais provável a ocorrência de restrições operativas.

Perguntas como “Por que a falta de investimento em linhas de transmissão é paga pelo consumidor, e não pelas empresas do setor?” (Fabiano D., RJ) ilustram o sentimento de que o ônus recai sobre quem não tem participação nos benefícios diretos.

3. Regulação, Governança e Transparência

Muitos manifestantes demandaram regras mais límpidas e fiscalização efetiva sobre como os custos do constraint-off são calculados, rateados e fiscalizados. Também querem maior clareza sobre quem ganha e quem arca com os encargos.

É um apelo por governança democrática no setor elétrico, para que os mecanismos não funcionem de forma opaca, favorecendo agentes mais estruturados.

4. Incentivo às Energias Renováveis e Alternativas

Embora o constraint-off atue justamente sobre fontes limpas (especialmente solar e eólica), muitos participantes defendem que o modelo regulatório deveria estimular, e não penalizar, a geração renovável.

Soluções como armazenamento de energia, microrredes e produção de hidrogênio verde foram citadas como caminhos para reduzir desperdícios e equilibrar a oferta.

5. Impactos Contratuais e no Mercado de Energia

Esse grupo de manifestações abordou aspectos técnicos: segurança jurídica diante de cláusulas contratuais, previsibilidade de custos para geradores e potenciais distorções de incentivos causadas por regimes de remuneração que subestimam risco de restrições operacionais.

6. Dúvidas Sobre o Conceito de Constraint-off

Alguns cidadãos admitiram não entender completamente o mecanismo, o que revela uma lacuna comunicativa: “Eu gostaria de saber o que vem a ser constraint-off no setor elétrico.” (Valdemir M., SP).

Esse ponto reforça que o debate regulatório não é apenas técnico, mas um espaço em que é preciso traduzir o jargão para o cidadão.

Ponto de Clímax: a injustiça percebida no repasse de custos

O cerne do debate, e o ponto de maior tensão, reside na seguinte questão: por que o consumidor deveria pagar por algo que não consumiu?

Essa percepção de injustiça emerge sempre que há uma assimetria entre quem decide (operador, gerador ou regulador) e quem paga (usuário final). Quando falhas ou limitações estruturais no sistema são tratadas como custo repartido, a credibilidade regulatória é posta em xeque.

O momento de clímax desse debate foi justamente no apelo por substituir o modelo de repasse cego por critérios mais refinados de rateio, responsabilização de agentes mais próximos ao problema e adoção de mecanismos de mitigação prévia (investimentos em rede, armazenamento, planejamento territorial).

Por que isso é importante — e o que está em jogo

Responder ao “por que” desse debate é fundamental para perceber seu alcance:

  • Proteção ao consumidor: se o modelo regulatório permitir que encargos sejam repassados sem contrapartidas claras, há risco de consumo injusto e oneração indevida de famílias e empresas.

  • Eficiência do setor elétrico: mecanismos de mercado e incentivos bem calibrados estimulam investimentos e evitam gargalos. Modelos desequilibrados podem gerar desincentivo à geração (renovável ou não).

  • Segurança jurídica e previsibilidade: geradores e contratantes demandam regras claras sobre quando, por que e quanto podem ser ressarcidos. Incerteza gera aversão a investimento.

  • Transparência e legitimidade institucional: para que o público aceite decisões regulatórias, é necessário que elas sejam bem explicadas, justificadas e auditáveis.

  • Transição energética justa: estamos em uma fase de expansão renovável acelerada, e regulamentos que penalizam ou restringem essa expansão podem frear metas de descarbonização.

Caminhos regulatórios e soluções emergentes

Com base nos debates, nas normas vigentes e em práticas internacionais, algumas direções se mostram promissoras:

  1. Critérios mais refinados de rateio de custos
    Em vez de repartir uniformemente entre todos consumidores, pode-se ponderar por região, perfil de carga, distâncias de escoamento ou localização dos geradores. Isso evita externalidades injustas.

  2. Fundo de alívio ou mecanismos de compensação coletiva
    Estabelecer provisionamentos setoriais que amortizem os impactos em momentos pontuais, reduzindo picos de repasse para o consumidor.

  3. Obrigação ou metas de investimento das transmissoras
    Regulamentar que empresas de transmissão participem mais ativamente do risco de expansão, especialmente nas áreas de renovável crescente.

  4. Incentivos ao armazenamento, hidrogênio verde e microrredes
    Soluções tecnológicas para absorver excedentes, suavizar variabilidade e reduzir a pressão no sistema central.

  5. Normas de comunicação e transparência
    Exigir que o ONS, a ANEEL e os demais operadores publiquem relatórios claros e acessíveis sobre eventos de constraint-off, critérios de compensação e impacto tarifário.

  6. Revisão contratual e estabilização regulatória
    Garantir cláusulas contratuais que definam previamente os tratamentos para restrições operativas, reduzindo litígios futuros.

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